24°C 30°C
Natal, RN
Publicidade

RELEMBRANDO MIGUEL MICUSSI

A pequenina Natal do começo do século em pouco ou nada se diferenciava dos tempos em que, durante o período impe­rial, era a sede do governo dos Presidentes da Província, sendo ela mesma administrada por um Presidente da Intendên­cia.

08/05/2023 às 10h03
Por: Adrovando Claro
Compartilhe:
RELEMBRANDO MIGUEL MICUSSI

Por Claudio A. Pinto Galvão

Durante os séculos IX a XI, as cidades européias, cuja estrutura e organização social seguiam o modelo das antigas cidades romanas, sofreram fortíssimo abalo na sua importân­cia social. Motivos os mais variados contribuíram para a queda de posição que elas ocupavam e as suas populações, pressionadas pela insegurança social em que se vivia naquele momento, refugiaram-se nos campos e arredores dos castelos, que eram as moradas e "quartéis" dos proprietá­rios rurais. Foi o que se conheceu como período feudal.

     Com o passar do tempo e queda do poder político e mili­tar dos proprietários rurais, os períodos de paz e tranqüilidade se tornaram mais constantes e as cidades retornaram, lentamente, à posição de destaque que antes ocupavam na vida das pessoas; voltaram, enfim, a ser o lugar mais indi­cado e preferido para se viver.

     Naquela fase de renascer das cidades evidenciou-se a necessidade de se aprimorarem os processos de sua adminis­tração e o edifício que sediava a administração municipal passou a ocupar lugar de destaque entre os demais.  Da mesma forma que as aglomerações urbanas europeias disputavam entre si o destaque de possuírem a mais bela catedral estabeleceu-se, igualmente, uma competição ao se tentar construir e pos­suir o mais belo edifício para abrigar a sede de sua admi­nistração. Tais edifícios, por sua beleza e imponência tornavam-se, assim, centros da atenção e respeito dos cidadãos e a grande maioria deles se tornou obras primas da arquitetura dos períodos gótico e renascentista.

     Belas estruturas foram erguidas a partir daquele mo­mento e suas altas torres, elemento presente na maioria de­las,  pareciam identificar-se com a altura do poder econô­mico das cidades que, igualmente, crescia e se consolidava. Aquelas soberbas construções continuam sendo, motivo de or­gulho da maiorias das cidades europeias atraindo, ainda hoje as atenções dos visitantes: são assim o "Hotel de Ville" de Louvain, considerado o mais belo edifício civil da Europa, o "Palácio dos Doges" sede da administração da antiga república veneziana, o "Palazzo Vecchio", que viu passar em suas de­pendências a gloriosa história da administração dos Medici, na Florença renascentista.

     Nas pequeninas cidades do Brasil colonial a adminis­tração teve que se sediar em modestas instalações até que as condições econômicas permitissem a construção de um prédio mais condizente com a sua importância. O palácio do governa­dor geral do Brasil Tomé de Souza, em Salvador, Bahia, ainda guarda, no que res­tou de seus traços originais, a marca de sua imponência.

     A pequenina Natal do começo do século em pouco ou nada se diferenciava dos tempos em que, durante o período impe­rial, era a sede do governo dos Presidentes da Província, sendo ela mesma administrada por um Presidente da Intendên­cia.

     A administração municipal se sediava em um velho so­bradão de muitas janelas, situado na esquina da antiga Rua da Cruz, que se chamou depois Conselheiro João Alfredo (a partir de l888) e Avenida Junqueira Aires (a partir de l896) com a rua Ulisses Caldas e pouco se sabe sobre as suas dependências interiores. Possuía um salão onde se realizavam festas e recitais musicais. Ali se apresentaram, a 10 de março de 1896, o violinista italiano Vicenzo Cernichiaro acompanhado ao piano pelo nosso conterrâneo Amaro Barreto Filho. O "Salão da Intendência" estava lotado, assim noti­ciou "A República". Outro violinista, o norte rio-grandense Joaquim Scipião de Albu­querque Maranhão apresentou também, no mesmo salão, um recital, com a partici­pação de diversas senhoritas natalenses, a 28 de maio de 1900, informa o mesmo jornal.

     O ano de 1922 viu passar o primeiro centenário da Independên­cia do Brasil: festas e comemorações foram programadas em todo o país para celebrar a data. O governador do Estado do Rio Grande do Norte era, naquele momento, o Dr. Antônio José de Mello e Souza (1867-1955) que esteve à frente do governo em duas ocasiões: de 1907 a 1908 e de 1920 a 1924. O Presidente da Intendência Municipal era o major da Guarda Nacional Theodosio Paiva (1858-1926), tendo como vice-presi­dente o Major Fortunato Rufino Aranha, que esteve no exercício da presidência durante quase todo o ano de 1922.

     Uma comissão foi designada para planejar as festividades mas um fato material, mais concreto e permanente, lembra coti­dianamente aquela data; a substituição do antigo prédio da Intendência Municipal por um novo, cujas linhas arquitetôni­cas e dependências internas fossem mais condizentes com o momento que se vivia. 

 

     Em fins do século passado, grande número de italianos emigrou para o Brasil. Entre eles, um rapaz de pouco mais de vinte anos buscava nas terras distantes da América uma melhor sorte e o meio ideal para o exercício de suas habilidades.  Descendia de uma família de russos - os Mikuski - que se transferira para a região do Friuli italiano e lá de fixara. Com o passar do tempo, o nome adaptou-se ao idioma italiano, transformando-se em Micussi. O jovem Miguel nasceu na cidade de Udine, em 1870, e prestou serviço militar na Áustria, ser­vindo num Batalhão de Engenharia onde, provavelmente, tomou conhecimento das técnicas da construção.

     Pouco se sabe de sua vida naquele período. A primeira notícia de Miguel Micussi no Brasil mostra-o já na cidade de Pirapora, Estado de Minas Gerais, casado com dona Querobina Micussi. Naquele Estado nasceu, em 1914, Maria, sua primeira filha. Acompanhando o engenheiro Prohença de Brito transfe­riu-se para Natal onde fixou, definitivamente, residência. Aqui viveria, sempre modestamente, de seu trabalho de cons­trutor e empreiteiro de obras. Trazia para Natal o que vira e aprendera na Europa; sua experiência e o bom gosto de seus trabalhos trouxeram uma notável contribuição para melhoria da qualidade e beleza dos prédios construídos em Natal. As fachadas das suas construções são, ainda hoje, reconhecidas pelo toque de elegância que lhes soube dar.

     A primeira data exata que se tem de Miguel Micussi em Natal é a da inauguração, a l2 de junho de 1917, do monumento ao Padre Miguelinho, por ocasião do primeiro centenário do seu martírio, durante a chamada revolução pernambucana de 1817. As festividades, promovidas pelo Instituto Histórico e Geográfico, movimentaram a cidade com uma grande participação do povo e autoridades. A inauguração do monu­mento, que ainda se encontra no centro da Praça André de Al­buquerque revestiu-se da maior importância. Presentes o Go­vernador Ferreira Chaves, os Presidentes da Intendência e do Instituto Histórico, outras autoridades e grande massa popu­lar. O Dr. Henrique Castriciano, depois de inflamado dis­curso desceu a cortina que velava o monumento. A coluna de granito de Lages, simples mas expressiva, foi esculpida por um grupo de canteiros portugueses, espanhóis e brasileiros, "sob a direção do hábil artista Sr. Miguel Micussi", informa a Revista do Instituto Histórico e Geográfico, volume XV.

     Dois anos depois, novo trabalho de Miguel Micussi é dado à cidade; a 7 de agosto de 1919 inaugurava-se a herma do padre João Maria, localizada na praça do mesmo nome. O monumento foi executado mediante subscrição popular e por iniciativa do Pedro Soares de Araújo Filho. O busto em bronze foi executado sob o modelo em gesso moldado pelo pro­fessor Raymundo Hostilio Dantas. Diz a Revista do Instituto Histórico, volume XVIII que "Ao provecto artista italiano Mi­guel Micussi coube projectar e construir, com o granito das pedreiras de Lages, deste Estado, a base e a coluna, orlada de viride canteiro, sobre as quais foi colocado o busto em bronze do inolvidável pároco de Natal."

     A primeira construção importante que se sabe realizada realizada por Miguel Micussi foi a residência da família Cícero Franklin de Souza, inaugurada naquele mesmo ano de 1919 e localizada na esquina da Rua Po­tengi com a avenida Nilo Peçanha. A bela construção que, pela excelência de suas linhas, foi alvo de estudo dos alu­nos do curso de arquitetura da UFRN foi, lamentavelmente, demolida para dar lugar a um inexpressivo espigão.

     No ano de 1921, mais um trabalho de Miguel Micussi: o jornal "A República" publica, em sua parte oficial, diversas solicitações suas e respectivas autorizações pelo Governo do Estado, do pagamento das cinco prestações por seus traba­lhos como contratante do pavilhão onde deveria funcionar a Escola Normal. Tal construção se realizou no prédio do Grupo Escolar Augusto Severo, construído pelo arquiteto Her­culano Ramos em l907, onde se instalou, posteriormente, a Secretaria de Segurança Pública e, depois, a Faculdade de Direito. Realizou, ainda, serviços de limpeza no prédio da Escola Normal.

 

 

 

     A 16 de dezembro de 1921 o Sr. Mário Eugênio Lyra, se­cretário da Intendência Municipal, por ordem do Sr. Fortu­nato Rufino Aranha, vice-presidente no exercício da presi­dência da Intendência, tornou publico o edital de concorrên­cia para a construção do prédio daquela entidade, a se rea­lizar, no dia 20 de janeiro de 1922, perante o Conselho Mu­nicipal. Nova concorrência foi marcada para o dia 4 de feve­reiro do mesmo ano e o contrato para construção lavrado três dias depois, foi assinado pelo secretário e vice-presidente no exercício da presidência. A obra foi orçada em 128:490$000 (cento e vinte e oito contos e quatrocentos e noventa mil réis). O prazo de entrega seria o dia 30 de agosto do mesmo ano.

     A construção foi iniciada a 9 de fevereiro. A 3 de ju­nho foi levantada a última tesoura da coberta e, logo depois, erguida a cumeeira. Embora inaugurada anteriormente, a obra foi realmente concluída a 9 de novembro. Durante a  realização dos trabalhos a Intendência resolveu mudar o telhado de telhas comuns para as do tipo francês, o que acresceu a obra em mais 5:200$000 (cinco contos e duzentos mil réis). Com os serviços de instalação elétrica, mobiliário, alcatifa e demais utensílios necessários, a Intendência efetuou gas­tos totais de 251:000$000 (duzentos e cinquenta e um contos de réis).  

     O novo prédio da Intendência Municipal de Natal foi inaugurado às doze horas do dia 7 de setembro de 1922. Pre­sentes o governador Antônio José de Mello e Souza, o vice-presidente da Intendência no exercício da presidência Fortu­nato Rufino Aranha e autoridades religiosas, civis e milita­res. Assinaram a ata de inauguração mais de duzentas e trinta pessoas. O construtor não aparece na fotografia.

     No mesmo dia 7 de setembro, às 16 horas era inaugurado mais um trabalho de Miguel Micussi: o monumento da Indepen­dência, localizado à Praça 7 de setembro, cujas estátuas fo­ram da autoria de A. Bibiano Silva, está montado em um pe­destal que foi "executado no granito e montado no lugar pró­prio, sob a direção do provecto arquiteto italiano Miguel Micussi", diz a Revista do Instituto Histórico e Geográfico, volume XIX.

     João Carlos de Vasconcelos, Presidente de Honra e, mui­tas vezes Presidente da Liga Artístico-Operária Norte-Rio­grandense dá o seu testemunho de mais um trabalho realizado por Miguel Micussi. Em palestra pronunciada na Liga, a 23 de julho de 1967, publicada sob o título "50 Anos", informa que, em começos de 1922, solicitou "ao companheiro arquiteto Miguel Micussi, de saudosa memória, fizesse a planta do novo prédio, de dois pavimentos e respectivo orçamento." A obra foi inaugurada a 6 de março de 1923; pequeno e elegante, o prédio, localizado na esquina da avenida Rio Branco com rua Coronel Cascudo, ainda mantém a fachada original. Importante notar que a obra, que durou "doze meses e onze dias de luta tremenda" foi realizada, ao mesmo tempo em que se construía a Prefeitura.

     A última obra conhecida de Miguel Micussi é o prédio do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, localizado à Avenida Deodoro. A entidade, fundada a 12 de outubro de 1917, funcionava em uma casa da esquina das ruas da Con­ceição e Coronel Cascudo, em frente à lateral do Museu Café Filho. Em fevereiro de 1921 o governo do Estado doou à enti­dade o terreno da Avenida Deodoro e o seu idealizador, Dr. Manoel Varela Santiago Sobrinho, pôde dar início à obra três anos depois.

     O construtor não pôde ver a conclusão de seu trabalho pois faleceu no Hospital Juvino Barreto (atual Hospital Universitário Onofre Lopes), a 8 de novembro de 1926, con­tando, apenas, 56 anos de idade. Bondes especialmente con­tratados pela Liga Artística e Operária (de que era sócio) levaram o féretro para o cemitério do Alecrim, onde está se­pultado no túmulo de 225, da Rua Santo Estêvão.

     Havendo sua esposa falecido antes dele, a 19 de março de 1923, ficaram os seus três filhos sem nenhum parente que os amparassem. Maria, a mais velha, foi criada no então or­fanato Padre João Maria. Américo (nascido em 1921) foi criado pela sua madrinha Adelaide Santos e Humberto (nascido em 1922 e falecido em 1984) foi adotado pelos seus padri­nhos, comerciante Manoel Duarte Machado e sua esposa, Amélia Duarte Machado.

     Do casamento Américo, único dos filhos vivos, com Ma­ria Angélica Micussi vieram seis filhos: Maria das Graças, José Mi­guel, João Maria, Maria de Fátima, Francisco Américo e Rai­mundo Luís e cinco netos: Maria Angélica, Leonardo Rocally, Maria Auxiliadora, Larissa Ricelly e Cristiano.

     Humberto casou-se com Joana d'Arc Cabral e ti­veram quatro filhos: Maria José, José Humberto, Maria Eliza­beth e Maria Amélia e uma neta, Teresa.

     Passados setenta anos da inauguração do novo prédio da Prefeitura, a administração municipal e os habitantes de Na­tal têm o momento oportuno de prestar uma merecida homenagem a Miguel Micussi, seu construtor. Uma placa comemorativa e um seu retrato (raríssimo! cópia de um dos dois únicos que deixou) serão inaugurados no recinto do prédio que, há tanto tempo, planejou e levantou. Tornado natalense por opção, trouxe da Europa uma visão nova da arquitetura que aqui realizou. Quem se ocupar em contemplar as fachadas de seus prédios encontrará, em todos eles, um toque de bom gosto e elegância que bem caracterizam o autor. Está bem no tempo de tombá-los, todos, para que sejam evitadas as desas­tradas demolições em nome do progresso e do capitalismo.

     Na sua modéstia e simplicidade certamente não imaginou que projetaria um prédio orgulho da nossa cidade assim como acontece, guardadas as proporções, com as antigas cidades europeias. Ao construir a sede e coração da cidade que se tornou, também, sua, Miguel Micussi tem o seu nome, com muita justiça, permanentemente marcado no coração dos natalenses.

 

* Claudio Galvão é professor aposentado da UFRN, Doutor pela Universidade de São Paulo e membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN.

As pesquisas de informações sobre Miguel Micussi foram realizadas por Claudio Galvão e, igualmente, por Maria das Graças Micussi, sua neta.

Lenium - Criar site de notícias