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Apegos contemporâneos

A Teoria do Apego, proposta por John Bowlby, nos ajuda a compreender melhor esse fenômeno ao destacar a importância dos vínculos afetivos ao longo da vida.

09/06/2025 às 10h56
Por: Adrovando Claro
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Boneca bebé reborn
Boneca bebé reborn

Por Paulo Góis - Psicólogo

Recentemente, li sobre o caso de uma mulher que entrou com uma ação na Justiça do Trabalho contra a empresa em que trabalha por não ter recebido licença-maternidade para cuidar de sua boneca reborn. Embora pareça um caso extremo ou até inusitado, ele revela um fenômeno crescente no comportamento contemporâneo que merece atenção: o apego emocional a bonecas hiper-realistas. Esse não é um caso isolado, mas parte de um movimento mais amplo que envolve questões de saúde mental, afetividade e formas alternativas de lidar com a solidão e o afeto na sociedade atual.

Enxergo esse comportamento com preocupação, embora não exista uma definição única para os casos que acompanho na mídia. Como profissional da saúde mental, busco compreender esse fenômeno a partir de diferentes abordagens e interpretações da área. Muitas pessoas — especialmente mulheres — recorrem a essas bonecas como forma de enfrentar perdas emocionais, utilizando-as como objetos de substituição simbólica. Nesse contexto, a boneca funciona como um apoio psíquico diante da ausência ou da dor, auxiliando no processo de luto ou de perda.

A Teoria do Apego, proposta por John Bowlby, nos ajuda a compreender melhor esse fenômeno ao destacar a importância dos vínculos afetivos ao longo da vida. Em muitos casos, o cuidado com uma boneca reborn representa uma tentativa inconsciente de restaurar ou recriar laços seguros, especialmente em pessoas que vivenciaram carências emocionais, traumas ou experiências de abandono. Esses vínculos simbólicos atuam como mecanismos de compensação emocional. Diferentemente de um filho real, a boneca oferece uma maternidade idealizada — sem imprevistos, frustrações ou responsabilidades concretas. Trata-se de um bebê que não chora, não adoece e não cresce. Assim, viver essa fantasia pode representar o desejo de exercer um papel materno em um cenário controlado, livre dos desafios impostos pela realidade.

Em determinados contextos, o vínculo com a boneca pode ativar memórias afetivas e despertar sentimentos de cuidado, promovendo sensações de calma, acolhimento e propósito. Essa relação simbólica está profundamente ligada às construções sociais em torno da maternidade. O ideal materno, frequentemente romantizado, e os papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres ainda influenciam fortemente o comportamento feminino. Dessa forma, a maternidade simbólica proporcionada por essas bonecas pode surgir como uma resposta a essas pressões culturais ou como uma maneira de experienciar a maternidade fora dos moldes convencionais, em um espaço onde a pessoa tem liberdade para criar e controlar esse vínculo conforme suas necessidades emocionais.

Tenho dedicado atenção à relação entre processos cognitivos e comportamento humano. No apego às bonecas reborn, diversas áreas cerebrais são ativadas simultaneamente: o sistema límbico, que regula emoções e apego; o córtex pré-frontal, responsável pelas funções executivas; o córtex cingulado anterior, envolvido na atenção e na empatia; a área de Broca e o córtex temporal, ligados à linguagem, narrativa e simbolização; o giro fusiforme, que reconhece rostos; o giro supramarginal, relacionado à empatia visual; e os neurônios-espelho, que promovem respostas motoras e afetivas ao outro. Esse complexo conjunto evidencia que a maternagem com essas bonecas vai muito além de uma simples brincadeira: é uma manifestação profunda de necessidades emocionais, cognitivas e sociais. Revela como o ser humano busca construir sentido, afeto e conexão em um mundo cada vez mais marcado pelo isolamento e pelas transformações nas relações interpessoais.

Mais do que julgar ou estigmatizar, é urgente que a sociedade compreenda essas novas expressões de afeto e cuidado, reconhecendo que elas apontam para desafios contemporâneos relacionados à saúde mental, identidade e às múltiplas formas de viver a experiência humana. Entender e acolher esses fenômenos pode ser o primeiro passo para uma sociedade mais empática e inclusiva.

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