Entrelaçando passado, presente e futuro em uma narrativa única, Raoni tece sua concepção sobre a vida, a floresta e o mundo atual.
A Companhia das Letras tem a honra de anunciar a publicação da trajetória de um dos mais influentes líderes indígenas contemporâneos, registrada em suas próprias palavras. Para nós, sua história é um testemunho inigualável de resistência, sabedoria ancestral e compromisso com a terra.
Nas páginas Memórias do cacique — que chega às livrarias em 24 de junho —, Raoni tece sua concepção sobre a vida, a floresta e o mundo atual e compartilha de maneira única a cultura, a cosmologia e a luta do povo Mẽbêngôkre. Saiba mais sobre a obra e leia um trecho em primeira mão.
O CACIQUE
Ropni, aportuguesado como Raoni, pertence ao povo Mẽtyktire-Mẽbêngôkre, também conhecidos como Kayapó e Txukarramãe. A aprendizagem parcial do português, sua autoconfiança, orgulho e ambição habilitou Raoni a atingir respeito e projeção internacional com sua defesa imbatível da Floresta Amazônica e de seus habitantes milenares.
A EDIÇÃO
O livro foi construído a partir de entrevistas inéditas realizadas pelos tabdjwy de Raoni, seus netos, entre 2020 e 2023. Falando sempre em mẽbêngôkre, e rodeado de parentes, Raoni gravou durante dezenas de horas, em diversas sessões, as histórias e mitos que resultaram neste relato. O material foi traduzido para o português por meio de um trabalho meticuloso e extenso de uma equipe de tradutores Mêbêngôkre, sob a coordenação do antropólogo Fernando Niemeyer, que também supervisionou a redação e edição do manuscrito.
A publicação de Memórias do cacique tem o apoio do Instituto Socioambiental, do Instituto Sociedade, População e Natureza e do Instituto Raoni.
LEIA UM TRECHO
NASCI NUM MOMENTO DE UNIÃO
Eu nasci no Kapôt, numa aldeia chamada Krãjmopryjakare. Essa aldeia ficava em cima de um morro e de longe dava para ver os caminhos que levavam às roças, por isso ela ganhou este nome: Krãjmopryjakare, serra dos caminhos brancos. Nasci num momento de união entre dois grupos Mẽbêngôkre, quando se juntou a nós o grande grupo do cacique Tapiêt, vindo dos Gorotire. Assim me contou minha mãe.
Naquele tempo nosso grupo estava realizando a cerimônia do bẽmp. Uma parte tinha ido atrás de papagaio e outra parte foi tirar banana numa capoeira. No caminho, meu tio Ngôryti se deparou com os sinais de um grupo inimigo e encontrou o local onde eles tinham pernoitado. Voltou para avisar o Bepgogoti, que era então a principal liderança do nosso grupo. Ele juntou alguns guerreiros e foi com eles até lá para verificar.
Seguiram procurando a trilha que os inimigos teriam percorrido. Chegaram na beira de um lago, beberam água, e Bepgogoti percebeu que havia ali uma pegada diferente. Reconheceram a pegada do Kaprãnmare, que é compadre, kràpdjwỳ, do meu pai.
— Sim, é o grupo do Kaprãnmare. Eles passaram por aqui. Vamos atrás deles.
E foram, sem parar para comer ou dormir. Toparam com eles na trilha, caminhando em fila, e Kaprãnmare era o que vinha por último. Bepgogoti chamou seu nome.
— Kaprãnmare!
Ele se virou.
— Opa!
— É você mesmo?
— Sim, sou eu.
Os que iam na frente se viraram para ver quem estava chamando. Então os dois grupos se reconheceram e choraram cerimonialmente, perguntando dos parentes, se estavam bem, de onde estavam vindo.
Só meu tio Ngôryti não se aproximou. Aproveitou que estava sozinho e mais afastado, tirou um pau, fez uma borduna e esticou a corda de seu arco. Ficou atento, preparado para o caso de acontecer alguma coisa. O grupo do Kaprãnmare também começou a ficar preocupado, e falavam entre si:
— Eles conseguiram alcançar a gente!
Como o sol já estava próximo de se pôr, decidiram pernoitar por ali mesmo. Ao escurecer, quando uma parte já estava dormindo, perguntaram ao Kaprãnmare:
— Vocês estão sozinhos mesmo?
— Sim, estamos só nós mesmo.
Mas desconfiaram.
— Se são só vocês, por que estão com essa pintura?
E ele contou a verdade:
— Eu vou contar pra vocês. Nosso pequeno grupo estava a meio caminho entre o grupo de vocês e o grupo do Tapiêt. Ele chegou até nós primeiro e a gente foi forçado a se juntar a eles. Assim nós viramos também inimigos de vocês. Eles fizeram com que a gente mudasse de lugar e ficasse perto daqui. Depois pediram pra gente vir na frente observar o lugar e as pessoas que a gente encontraria. Vocês encontraram a gente primeiro, mas o resto do nosso grupo está vindo. Nós somos muitos! O cacique Tapiêt está trazendo bastante gente, e eles já cruzaram o Bytire.
Nesse momento Bepgogoti estava dormindo, por isso somente no outro dia ficaria sabendo dessa conversa. Perguntaram a ele:
— E agora, o que a gente faz? Vamos voltar pra nossa aldeia?
— Não. Vamos continuar e chegar nesse grupo. Preciso ver quem são. Eles precisam me ver também. Depois disso a gente volta pra nossa aldeia.
O Bepgogoti era muito corajoso. Quando ele deparava com um desafio, não esmorecia.
Deixou sua espingarda, pegou um arco e saiu na frente.
— Vou caçar uma ave qualquer pra gente comer mais tarde.
Logo uma ave saiu voando e ele matou. E matou outra, e depois outra. Pendurou no caminho para os que vinham atrás carregarem. Continuou andando e outra ave saiu voando, matou. E matou outra, e depois outra. Pendurou também no caminho. Seguiu em frente e encontrou um bando de quati, matou um, outro, outro, e parou por ali mesmo. Quando o pessoal chegou, disse:
— Façam uma fogueira, vamos comer aqui e depois seguimos. Vamos ficar de ouvidos atentos.
Acenderam a fogueira, comeram, beberam água, banharam e seguiram, bem devagar.
Mais adiante toparam com locais de caçada deles. Já estavam muito perto! Começaram a ouvir vozes. Bepgogoti fez um grito usando palavras na língua ngôjrẽjre, um sinal de paz. Ao ouvirem esse grito, vieram ao encontro do nosso grupo. Aqueles que estavam armados ficaram na beira do rio, no alto de um barranco, enfileirados, observando de cima. Bepgogoti se posicionou na frente e foi subindo o barranco, puxando a fila do nosso grupo, até chegarem lá no alto. Outros do grupo do Tapiêt estavam escondidos, e ao perceber que não seriam atacados, apareceram. Mas outros, que estavam mais para trás, ficaram com medo e correram, antes de entenderem que se desenrolava ali um encontro amistoso.
Bepgogoti falou para irem atrás deles; ele queria fazer a paz com todo aquele grupo. Eles já tinham atravessado para a outra margem do rio Bytire e continuavam fugindo. Foram alcançados já perto do Kapôtnhĩnore e enfim convencidos a voltar juntos. Antes de retornar para a sua aldeia, Bepgogoti teve uma conversa com as lideranças do grupo do Tapiêt:
— Vamos ficar unidos, próximos uns dos outros, sem brigas. Vamos evitar a guerra porque nossas mulheres estão com medo.
E concordaram que assim seria. Bepgogoti voltou na frente e Tapiêt, esse grande cacique que veio a se tornar meu sogro, veio depois trazendo seu grupo. O dia em que Tapiêt chegou com seu pessoal em Krãjmopryjakare foi justamente o dia em que eu nasci.
SERVIÇO:
Memórias do cacique, Raoni (Ropni Mẽtyktire)
Número de páginas: 289
Preço: R$ 89,90 | E-book: R$ 39,90
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